Antologia Poética

capa-cd-antologiaPoética do mato

Eis uma amostra da poética mato-grossense. O trabalho da acadêmica Cristina Campos buscou contemplar autores, períodos literários e estética textuais. No presente encarte, há petiscos de poesia para todos os paladares. Autores ligados ou não à Academia Mato-grossense de Letras estão aqui reconhecidos e divulgados, gratuitamente, um mecenato do qual nos orgulhamos de poder realizar. Convidamos o ouvinte a multiplicar esse precioso conhecimento e a comungar com o silêncio para um mergulho na alma mato-grossense.

Casa Barão de Melgaço, 23 de junho de 2015.

Eduardo Mahon

Flores ao sabor dos ventos

Desafio lançado pela Academia Mato-grossense de Letras, missão de garimpagem aceita com alegria: pincelar textos de poetas mato-grossenses para compor um CD a ser gravado em áudio, com o fito de divulgar a rica produção literária de nosso Estado, ainda desconhecida de muitos. Este primeiro volume comportou 73 autores, com poemas de formas e temas variados, à escolha do ouvinte. Espero que o contato com a poiesis traga harmonia e êxtase às almas-lares de todos.

Cristina Campos

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                 VOAR

     É CONSTRUIR

ABISMOS

Pedido

Xos braço, xas mão,
eu vou pedir
xo corpo todo
pra xeu Jão.

Xas canela, xas cotxa...

Rufa xas coisa;
ruma a mala,
djunta a trotxa.

Xia minina, xia moça,
vamo simbora.

Tá na hora, ruma a trotxa!

Xos cabelo, xos beidjo
é goiabada nos xo beiço,
eu viro queidjo.

Xos olhinho, xos queitxo,
e se xa mãe vim te buscar
eu num te deitxo.

Xa cintura, xos peito
e aproveito
enquanto tá tudo no djeito.

Xas oreia, xos olhinho
e aproveito
pra pedir xo umbiguinho.

Xa boca, xa pretcheca,

Eu ixcrusive
quero toda ocê
compreta.

Xas perna, xa xana,

Eu quero ocê,
num tem mais beira
pra xa mana.

Xos braço, xas mão...

Bão, bão, bão!

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Antimetafísica

Cuiabá: cidade do antimistério,
onde a rua Voluntários da Pátria
acaba no Cemitério.

Peregrinos do amor

Seguindo sempre o nosso pensamento
vamos vencendo o nosso rumo incerto,
junto a mim matarei o meu tormento
e matarás também o teu, por certo...

Das mágoas procurando o esquecimento,
fazendo dessa vida um céu aberto,
venceremos a chuva, o sol, o vento,
a noite escura e as urzes do deserto...

Hás de sentir de mim meigos carinhos,
e não te cansarás nessa jornada
pelas ingremidades dos caminhos...

E nesse passo errante de judeus,
alegre trilharemos nossa estrada,
ambos felizes sob os pés de Deus!...

Histórias de mentira

“Era uma vez um Príncipe encantado...”
– naquele tempo a minha Avó dizia –
e me contava histórias do Eldrado,
do Lenhador, de João e de Maria.

E eu escutava alegre e deslumbrado
enquanto o vento no pomar gemia...
E no seu colo alvíssimo, encostado,
aos poucos, lentamente, adormecia.

Hoje, que aquele tempo já passou,
e qual fumaça angelical de incenso
a minha infância logo se acabou,

eu me recordo, quase todo dia,
dessas histórias de mentira, e penso
que foi Vovó quem me ensinou poesia...

A confissão da cigarra

Dona Cigarra cantadeira e esguia,
levando vida efêmera e bizarra,
numa tarde outonal contou-me, um dia,
que na Terra somente foi cigarra.

E, se não trabalhava, não pedia;
na Terra só foi música, guitarra,
enchendo-a de canções e de alegria,
simplesmente, na Terra, só cigarra.

– Dona formiga bem mentiu, perdoa;
não lhe bati jamais a porta,
mesmo em noites de bruma e de garoa.

Fui hino, fui canção, nunca elegia,
e morro – folha seca – mas que importa
se cantei e animei a quem me ouvia!

Poema

Tudo sumiu na distância...
Só meus olhos ficaram mirando
Como duas tochas acesas.
– Tudo se perdeu no entendimento obscuro.
Seus braços cansados, porém,
continuaram a pedir aquilo que não virá.
O Tempo aumenta a ânsia
desesperadora de criar.
E destrói a criação
pela incapacidade de sustentá-la.
Há flores que morrem
e não chegam a se libertar
do ventre que as gerou.
Por isso o esquecimento seria a solução
para estas janelas que se fecham ao nascente.

lógica anarcológica
implica filosofia

(ou)

existem mais coisas
nessas mudanças climáticas
do que imagina nossa vã ecologia

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Minhocão pariu lendas.
Foram, com o rio, pelo ralo.

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A noite não é má
Só escura
Questão de textura

Uma vez desvendado,
não mais se vê:
passa-se a sê-lo.

O ser mais sincero é uma mina de luz,
donde jorra tudo.

E como tudo é infinito
nunca mais para de jorrar.

O cachorro late, o chocolate esquenta,
o homem reinventa sua lucidez
e a vida se conduz,
à revelia de tudo isso.

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Pontaria

A guerra
se encerra
na guerra;
mira, atira,
mas não acerta o mal.

Guerra sempre erra
o alvo principal.

A flor de neve

Se a neve fosse planta e flor tivesse,
tu serias da neve a flor, gerada
da fria viração ao tênue sopro,
à luz da lua, aos beijos de uma fada.

Se a neve fosse planta e flor tivesse,
tu serias da neve a flor, mais bela
que brilhando na etérea imensidade
fanal de amor, adamantina estrela.

Se a neve fosse planta e flor tivesse,
tu serias da neve a flor tão pura!

Ah! Teriam em ti achado os homens
o símbolo da mais cândida ventura!

Se a neve fosse planta e flor tivesse,
tu serias da neve a flor bendita...

Causarias ciúme aos próprios lírios
que dos jardins do céu a brisa agita.

Se a neve fosse planta e flor tivesse,
tu serias da neve a flor querida,
no meio dos invernos – primavera,
sobre o gelado chão – ardor da vida!

Melhor que a flor de neve és tu, formosa,
alvo anjinho do céu baixado ao mundo,
para servir de tipo de beleza
e os preitos receber do amor profundo!

Eu não quero as réguas para traçar meus caminhos.
Eu prefiro as éguas, num galopar torto y veloz.

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Dizem que as paredes têm ouvido,
mas as de vidro têm olhos.

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Todas as estátuas são tétricas.
Tetricamente geladas e silenciosas.
Pedras evocando homens mortos,
caladas e inertes,
ocupando lugar nas praças!

A mato-grossense

Quanta ternura o seu olhar revela!
Que negro lustre tem o seu cabelo!
Que rosada e sutil a cútis bela
e o seio, um ninho do maior desvelo!

Qual da palmeira bem a prumo é o dela
formoso talhe: quem não pensa ao vê-lo?
Que música no andar, que olhar tem ela
que nos provoca a um amoroso apelo!

Morena Vênus desta terra amada,
quem a vê, tão singela de artifícios,
não diz que a alma possui ardente e ousada,
nem supõe, nesse aspecto langue e brando,
que é capaz dos mais duros sacrifícios,
mesmo na guerra, entre os canhões troando!

Amo

Amo as manhãs de maio tão fagueiras,
onde há réstias de brumas pela estrada;
os pássaros que cantam na alvorada,
sob os galhos das belas laranjeiras.

Amo o sussurro ouvir das cachoeiras,
no silêncio da noite enluarada;
amo a monotonia das lareiras,
ao canto da araponga na estiada.

Na visão do infinito ao céu, por certo,
o meu olhar ao longe então se aferra,
e ao meu sentir se prende o intelecto;

todo esse amor, meu canto predileto,
é a soberba expressão do meu afeto,
às belezas louçãs da minha terra!

Rio Cuiabá

Meu belo Cuiabá, meu grande rio amado,
de umbrosos saranzãs, cheio de ingênuas lendas
que o pescador feliz, contente e descuidado,
nas tuas verdes praias de maitame e rendas,

traduz tão bem a dor do lusitano fado
em que saudosas canções, nas rústicas moendas,
que o verde mangueiral ensombra, lado a lado,
como a tecer de flores pálidas legendas...

Estrada liquefeita das célebres Monções,
cuja lendária fauna supera as proporções
dos outros mananciais onde a riqueza aflora!

Bonançosa corrente que me embalou a infância,
com que sentir te vejo nesta ilusória ânsia
de bem viver contigo as ilusões de outrora...

A visão de Caim

Enquanto, à noite, os seus repousam do labor
na tenda que adormece e que aos poucos se ensombra,
ele somente vela; e, súbito, na sombra,
ei-lo torvado já, tolhido de pavor.

Os filhos, envidando o seu maior desvelo,
o tentam acalmar nessa luta sem fim;
mas é em vão que Jubal, Enoch, Tubalcaim
lhe procuram deter o torvo pesadelo.

E, fugindo à visão, que lhe recorda a imagem
de seu irmão Abel e sua culpa atroz,
ele nas mãos da prole eis que deixa o albornoz
e se some na noite, erradio e selvagem.

E, no entanto, ao passar pelas trevas, fugaz,
o fantasma o acompanha e lhe aumenta aquela ânsia,
e lhe diz: “Eu te sigo através da distância
e do tempo, Caim, onde quer que tu vás”.

Quero sair por aí

Quero sair por aí…
Sonhando, almejando, premonizando…
Refazendo o tempo... Era...
Eternidade desvirginando primavera...
Ritual, metamorfose da lida...
Reminiscências prescritas – incomensurável porfia...
Na infinitabilidade da vida!
Sair por aí, despetalando preces, em motes de poesia...
Mundos intraterrenos, estrelas habitadas...
Extrafísica vida; coral de harmonia...
Os escombros? Entesourados no emocional...
Lembram-nos lendas,
Contos de fadas,
Esparsas cantigas de ninar!...
Jesus! Manjedoura, no ápice do monte Tabor...
Discípulos! Estrada de Emaús empoeirada, iluminada!...
Sair por aí plantando amor...
Dulcificando a vida
No esmaecer da saudade!...

Planeta Terra! Genuflexo a suplicar:
Humildade, amor, união, fraternidade!
Astros em bando, cataratas iluminadas...
Infinito roteiro, sonorizando imortalidade!
Cambarás – ipês, em floradas...
Trinado de passaredos
Colibris, asinhas fluidas
Corais – musicais – exaltando madrigais
No santuário das madrugadas!

Quero sair por aí…
Galopando, cancionando...
Ouvindo vozes dolentes dos funerais
Na imensidão da transitoriedade!...
Seresteiro eternal da saudade!

Quero sair por aí…
A referendar o tempo...
Declamando canções
Que o tempo não prescreve...
Deslumbrado, sorrindo, extasiado, emocionado...
Na apoteose do santuário d’alma...
Inalienável patrimônio
Imortal catedral
Cavalgar – volitar!
Demandando o eternal!
Quero sair por aí…

Coisificação

O homem no avesso

matematizado, logicizado
homogeneizado com pedra
      que medra
na ideia matéria
da psicologia metálica

desindividualizado
      massificado
Pensamento objetivizante
escravizante do faustor
o número, signo, símbolo
      Reação da dor
Repor o antropo
dominar o cibernantropo
criar a coisa
subjetivar o criador

Senhor,

da engrenagem
      aferir
      medir
      sentir

Sentimento do homem

Máquina não sente
      nem mente
Caminhe o homem
      carne e osso
      não vazio
      consciente

Distância disfarçada em mim

I

Homem nevado de lonjuras, o que sou.
Despaisado numa distância triangular:
— você, nosso desejo, eu.
Ó mapa de estradas irregressáveis,
sem encontro, sem volta para o colo da amada descoberta.

II

Despaisei-me (suficiente) para ler direito
em outros mapas e buscá-la.
Mas tudo lonjuras, ausência de novo...

III

Hoje, então, regressarei à pátria,
e repartirei o poema
com as portas dos mercados anoitecidos,
com as esquinas que encompridam no meu corpo.
Convidarei um pária para bebermos,
(farra eterna)
Um sol de flores em homenagem ao desencanto da amada.

IV

Ela surrealizou-se no comportamento de todos os mapas.

(Poema de 1953.)

O Pônei

Em minha garganta,
um pônei nervoso dança angustiado
envolto em nuvens
...vai e volta
ele vai e volta
...vai e volta,
quer escapar.

Poeira cósmica invade suas narinas
...ele vai e volta,
não encontra saída
...vai e volta.

Uma dor intensa percorre seu corpo
cansado e suado, muito suado.
O pônei atropela as paredes da garganta;
ele se debate – como um homem ferido.
Ele, o pônei, está ofegante e se debate;
está triste, muito triste e exausto.

...................................

De repente,
trôpego e irresoluto, o pônei dispara
para o interior de minha garganta.
Então, sinto que o mundo desaba
e vejo que, entre nós,
tudo é escombro.

Nada mais resta
entre nós,
nada mais resta.
É o fim.
O mundo desaba.

Ânsia eterna

Subi ao último degrau do sonho!
O que sinto, o que vejo? Treva e poeira...
E esta febre, e este anseio, e esta canseira,
sem ver nada, onde quer que os olhos ponho!

Mas não! Eu vejo sim. É uma caveira,
o fantasma terrível e medonho
que sumiu no deserto ermo e tristonho
com a minha esperança derradeira.

O que resta de tudo que hei sonhado?
A alma desesperada, como um louco,
dentro desta carcaça de humilhado...

E, assim, numa agonia demorada,
sinto que já me invade, pouco a pouco,
a formidável sensação do Nada...

Voos e quedas

Se alcandoramos às alpinas
plagas gentis do Pensamento,
descemos breve às covalinas
tristezas d’alma em desalento.

Se surge um sol pelas matinas,
loiro a aclarar-nos; num momento
desaparece e só neblinas
vemos no dia nevoento.

É que nossa alma incompreendida,
por mil mistérios combalida,
não pode aos céus voo soltar.

Ai! Quem nos dera desta Terra
deixar o mal que a vida encerra
e para os céus voar, voar...

Somos apenas peregrinos
na pista eterna do ideal;
sonhamos sonhos cristalinos
à luz do Bem, cegos do Mal.

Cantando às vezes lindos hinos
– melros pousados no choupal,
despercebemos os destinos
nos aguardando um tremedal.

Caídos somos. Lutulenta,
a morte vem mais violenta
arremessar-nos para o Além.

Cessa a Esperança e somos vermes
para o rastejo e a nós, inermes,
putrefação célere vem.

Incontido desejo

Desejo da humilde liberdade!
Da liberdade de vagar pelas ruas,
sem horários e sem destino...
Liberdade de ser pobre
e de ser triste.
Liberdade de amar,
liberdade de ficar em silêncio
e de padecer minhas dores...

Ah! Ainda o incontido desejo de ser isento,
de ser eu mesmo:
tranquilo, plácido, vago,
tênue e ausente...
Na doce serenidade do desencanto...

Poesia é bote:
espinha de peixe
fisgada na glote.

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Onde antes era mata ciliar,
plantam eucaliptos –
monstros chupa-água.

Vinde e vede:
aos pingos,
a fonte verte sua mágoa
e, em breve,
não aplacará nenhuma sede.

Ressente-se a vida resseca.

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Marimbú

Eu sou o marimbú de todas as cousas.
De mim foi que nasceu o sol, a lua, as estrelas,
e o cosmos, e a noite.
Foi do meu coração que surgiu o amor.
Meu pensamento desenvolveu a creação.
Do meu sonho nasceu a poesia.

Deus precisava baixar até mim,
para ser esta pequena gota que sou,
olho d’água de todos os sofrimentos...
Na minha lágrima há a essência dos oceanos.
As constelações brilham mais quando choro...

Se eu não tivesse pés, não haveria raízes,
nem barbatanas, nem peixes...
Se não tivesse mãos, não haveria tacto, nem formas.
Se não tivesse olhos, os astros rolariam nas trevas.
Se não ouvisse, tudo estaria em silêncio
e os perfumes morreriam no caos, tristes, sem meu olfacto.

Eu venho do centro da Terra,
do coração do Ser
e nunca mais deixarei de existir,
porque sou a fonte de alegria eterna!
O mistério!
A vida!

EIS UM POETA FUDIDO
SEM TERMOS A MAIS
DESPREZANDO
COLÉRICO
O PRETÉRITO
MAIS IMPERFEITO FUTURO

VERBORREINDO
AÍ AFORA
RELES
REBRILHUZ
POR NOITES VIS

POETA SEM MARIA
OU PANELAS
POETA SEM BEIRA
NO COLAPSO
SEM PESCOÇO NO ATO
DA GUILHOTINA

O tempo
me fez assim:
nada mais
do que menos
de mim

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para você
mando presentes
desembrulhados:
um pôr do sol
três dedos de neve
garoa fina
uma boneca
de menina
latido de cachorro
para estrelas cadentes
duas flores secas
um café bem quente
cheiro de mar
a brisa na vela
a minha vista
da janela
toda luz de Paris
sonho perdido
a primeira vez
com os votos de
para sempre
como eu sempre quis

Cansaço

Tenho a alma tão velha e cansada
que um só desejo me anima: esquecer.
Dá-me, pois, sábio Khayyam, a ânfora consoladora,
quero embriagar-me e sonhar.

Minha janela se abre, num convite ao sonho
para a suavidade loura da tarde tropical...
Nuvens sonolentas vão rolando no horizonte,
por sobre a verde mansidão das montanhas,
– e anda em tudo um silêncio de exaustão,
um desejo de paz indefinido
que, languidamente, se estremunha no ar...

Enche-me a taça, amada minha,
e dá-me um beijo;
quero esquecer e sonhar...
Contar-te-ei, agora, histórias tão lindas,
que, certo, iguais nunca ouviste;
histórias que falam de amor
e de um mundo justo e perfeito.
Era uma vez...

O som do berrante

O som do berrante galopando no lombo do vento
faz com que o boi preste atenção no chamado e responde:
muuu, muuu, muuu, muuu...
Ouçam...
Ouçam, quantos berrantes soando,
quantos bois respondendo...
É a boiada no empurra-empurra da estrada,
tocada pelos peões, com chibatas nas mãos, esporas na botina,
chapéu de palha na cabeça
e saudade...
Saudade da mulher amada no coração,
da imagem na janela da casinha de sapê,
das lágrimas escorrendo,
da matula bem arrumada no sapicuá...
Matula no sapicuá, seu moço, é a comida colocada
dentro de um bornal, feito de pano,
que levava quase sempre farofa de carne de tatu ou de veado
e amor, muito amor, no feitio...
E o boi, babando aquela baba de boi,
mascando cumbaru,
olha pro boiadeiro e, entendendo sua saudade,
quase não desobedece...
E caminha resignado pela estrada do Pantanal em busca de novos pastos.
E o som do berrante?
O som do berrante, o som do berrante que antes era só para o boi,
agora,
agora é quase um choro de saudade...

Cuiabá

Lá no meio da selva verdejante,
num pedaço de terra solitária,
banhada pelo sol fulvo e cantante,
existe uma cidade legendária...

É a bela Cuiabá, bicentenária,
que tem o pedestal de ouro ofuscante,
onde chegou o bravo bandeirante
em busca da riqueza extraordinária.

Oh! Cuiabá, das lendas brasileiras
foste o sonho de glória das bandeiras
Eldorado de luz e de bonança.

O teu futuro está profetizado:
foste a cidade de ouro no passado,
és a Cidade Verde na Esperança.

A lua

Às vezes saio à noite, a contemplar
Poetisa do azul – a nívea Lua,
tão calmo e frio no meu peito atua
o denso raio do seu meigo olhar...

Concha leve de prata a desvendar
a grandeza do Céu toda desnua!...
A mim parece que minh’alma nua
vaga também no azul, sob o luar...

Recito versos meus à Poetisa,
e a minha tristeza se ameniza
em poeira de prata me inundando...

Noiva de poeta – chamo-a, em pensamento,
e ela vai pelo céu, mui lento... Lento...
A epopeia da noite recitando!

Hamlet

Hamlet diante do abismo
deveria ter dito como o outro de Shakespeare:
“To be or not to be – that is the question”.

Mas este Hamlet do meu poema
jogou o chapéu pra trás, engoliu em seco
e articulou:
“Mas que buracão, meu Deus do Céu!”.

É que este Hamlet do meu poema
é analfabeto,
trabalha na estiva,
é filho da minha lavadeira,
nada tem com Shakespeare
e só é Hamlet por acaso.

A adúltera

Avança a turba torva e alucinada;
para na praça e grita fortemente:
— Manchou o lar! Será apedrejada...
E gesticula e fala, impaciente...

Ergue do chão o olhar o Nazareno
e para castigar a que pecou,
tão cheio de indulgência quão sereno,
pergunta: — Qual de vós que nunca errou?

Silêncio intenso. E a massa vil, mesquinha,
do Deus onipotente se avizinha,
beija-lhe os pés e vão-se, os fariseus...

Quantos existem por aí, na vida,
que censuram a falta cometida,
sem refletir, jamais, nos erros seus!

Esquizofrenia

Existe uma voz dentro de mim
mansa e imperiosa, permanente e fatídica.
Ela sabe coisas que eu mal pressinto.
Grita, tão baixinho, certas verdades,
que mal consigo escutar.
Fico sem saber se sou vento,
pensamento, ou apenas movimento
à mercê dos vendavais sem tempo.

– Sou o quê? – E a voz se cala.
Existo ou sou miragem? Nada a voz me fala.
E eu permaneço na noite, terrena e ignara,
no movimento cósmico infinito de ir e vir, sonhar e realizar.
– Crer ou duvidar? – A voz vacila.
Tange as cordas de sua harpa,
lançando no ar... quase uma música,
mais parecendo um suspiro de anjo,
uma tela pintada por Deus,
ou o voo de um beija-flor.
– Crer ou duvidar?
Espero a voz... Ela não vem.
O anjo bate as asas e me fita diretamente nos olhos.
A tela de Deus se enche de mais luzes e matizes
e o beija-flor decide fazer seu ninho em meu jardim.

O universo retorna ao ovo
e eu retomo o meu caminho
entre as estrelas e o sol
onde a lua encontra o mar.

Me faz uma casa

ah! minha gentil arquiteta
me faz uma casa
e eu te convido a morar

uma casa aquática assim
com uma piscina imensa
formato?
claro que o do mar Egeu

me bola uma casa ventosa
pra tilintar campainhas chinesas
derrubando os vasos das mesas
– e você reclame ao arrumar –

uma casa bem gostosa
uma varanda pra prosa
toda a noite após o jantar

use os teus materiais modernos
mas preserve o barulho da chuva no telhado
algum canto fresquinho e sombreado
para eu poder cismar

um jardim com um jeito antigo
um portal com um ar amigo
convidando a se entrar

suíte pra mim é nome de música
quero então uma alcova
onde eu depondo a armadura
me arme de toda a candura
para poder te amar

vai! desenha a casa
vamos sonhar
pagando o resto da vida
as prestações do BNH.

˜ Perguntadeira ˜

˜ Quem curará o soluço crônico da borboleta?
˜ Que mágoa semeou de espinhos o coração do pequi?
˜ Ficou com rabo vermelho a piraputanga de tanto comer pitanga?
˜ Qual engraxate lustrou a casca da bocaiuva?
˜ Perguntam-se inquietas as espumas: renasceremos em outra cachoeira?

Única

Em taça de ouro condeno
o vinho e o mel que me dão...
Mas beberia veneno
na concha de tua mão!...

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Sinete

Até nas horas de luz,
nossa fatal condição:
– a sombra que o homem produz,
a nódoa do homem, no chão!

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Receita

Para pôr fim à aflição
e retornar a doce calma,
só uma pequena alteração:
– arma, por alma.

Dona Polica

Dona Polica contava histórias...
Contava dos escravos
que carregavam pedra-canga
pra fazer a ponte do rio.
Contava que os escravos
apanhavam até sangrar
do feitor.

E diz que, hoje, eles vivem gemendo
– como gemem nossas dores –
lá nos fundos de nossos quintais.

Velho cachimbo

Velho cachimbo que encontrei perdido
no meu pomar, ao pé de um umbuzeiro,
há quanto tempo estavas esquecido,
porém subsistindo ao cativeiro.
Só mesmo em barro perdurar podias.
Ao te mirar, me lembro do passado,
em que o negro sofria escravizado,
sem voz, sem liberdade, nas senzalas,
e da macumba aos passos ritmados
do fetichismo, os deuses invocados
ao soar do atabaque ensurdecido,
do bamboleio do seu rude corpo,
das blasfêmias em sua língua estranha
contra aqueles que o foram cotizar
em Moçambique, Angola ou Zanzibar.
Se pudesses falar, o que dirias?
Um romance, por certo, escreverias
de anátemas, quem sabe? De perdão,
porque também sofreste a desventura
de pertencer à negra escravidão.
Se a pele em muito caso é preta, escura,
mas é alvo, no fundo, o coração.
E, no entretanto, como eu te venero
simbolizando assim esse passado
de conquista e de glórias, sublimado
na criação do meu Brasil querido,
em que o negro fez tanto e nada tem.
Quantas vezes teu dono, pensativo,
a contemplar o fumo, em espiral,
mandava o pensamento redivivo
sobre as plagas do seu torrão natal.
E, clamando, clamando a sua sorte
de preso e escravizado até a morte,
rolavam-lhe nas faces desterradas
da nostalgia as lágrimas choradas.
Boca estragada e bem fendida ao meio,
desenhos toscos, de molduras cheio,
relembrando por certo alguma cousa
dessa existência que o passado envolve
e que somente agora se resolve
nas páginas velhíssimas da lousa.
Será que, porventura, em algum dia,
bebendo da existência uma alegria
ouviste o teu senhor sorrir consigo?
Nada respondes, porque nada falas.
São cousas que morreram nas senzalas
e dormem para sempre no jazigo.
Vou te levar ao panteon da história;
desse passado tu ganhaste a glória,
é um direito que tens adquirido.
Ninguém te negará esse lugar,
e lá, entre a velhice do teu tempo,
terás com quem, por certo, conversar.

O passarinho

Ao ver um dia, preso na gaiola,
um passarinho que gorjeava triste,
num trinar, onde só a dor consiste...
Qual prece humilde que p’ra o Céu se evola!

Inquiri: — Quem te faz pedir esmola
da liberdade, que também te assiste?!
Cuja cena, minh’alma não resiste
porque teu trino só me desconsola!...

E meu filho confessa essa verdade:
“Sou eu quem prende a pobre criatura;
mas não foi por maldade!”.

E, comprovando a mera travessura,
abre a gaiola e diz co’ingenuidade:
“Busca teus Lares, onde tens ventura!”.

Bom Jesus

Mãos de mulher, na velha e heroica Sorocaba,
fizeram esta augusta imagem do Senhor.
Trouxe-a não um estranho, um ádvena, um emboaba, mas Pedro de Moraes, paulista sem temor.

Dura a rota, cruel a jornada, em que acaba
o ânimo do mais rude e audaz desbravador:
rios nove a vencer, desde Araritaguaba!
Serras e boqueirões medonhos a transpor!

Mas quando, baldo o esforço, a energia vencida,
param em Camapuã desalentadamente,
vem a imagem buscar uma turma luzida,

que, entre festas e gáudio, às minas a conduz:
e doando o Bom Jesus à Cuiabá virente,
a linda Cuiabá consagra ao Bom Jesus!

Lapidador de lágrimas

Feliz quem pode, da infinita dor
no inevitável pego tumultuário,
desabafar, em rútilo rosário
de lágrimas, seu agro dissabor.

E no ádito dos sonhos, com primor
cristalizar o pranto refratário,
qual na oficina o testo lapidário
trabalhando da gema o áureo lavor.

Feliz quem como tu, mestre querido,
tem o condão secreto e apetecido,
da arte augusta no mágico esplendor,

de converter em pedras rutilantes,
em safiras, topázios e diamantes,
as suavíssimas lágrimas da dor.

Rasteja cobra…
Rasga o pulso da lógica.
Envenena Deus,
mata o início,
mata o fim.
Destrói as palavras,
liberta a poesia
das entranhas do poema,
dos nomes dos poetas.
Faça do mundo
novamente...
um infinito ponto de interrogação.

Domingo de procissão

Sinos. Há festa no povo.
Enorme, quente, loução,
o sol é uma gema de ovo
pendurado na amplidão.

O céu, no vestido novo
das nuvens cor de algodão,
ri, de alegre, para o povo.
Domingo de procissão.

Vivas. Uma voz de vozes
absurdas, surdas, velozes,
da rua guaiando vem.

Quem há que essa voz entenda?
É o vento. Volta da venda.
Está bêbado também.

Éden perdido

Vacilantes no horror da perdição o espanto,
sós, num ermo, sem Deus, sem céu, sem rumo certo,
vêm as feras rugindo hostis em cada canto...
E o azul sorri tão longe, e a terra uiva tão perto!

Que importa o Éden desfeito no ar! O sonho e o encanto
e a cólera divina e o chão de urzes coberto!
Pois acima de Deus muito mais forte entanto
era o amor que os levava através do deserto.

Nem uma sombra... Sós! Clamam... E o céu é mudo,
o ar é abafado, o sol abrasa, ermam-se os ninhos.
E os dois sofrendo assim a maldição de tudo.

Morta a recordação do paraíso em flor,
abraçam-se outra vez, nos supremos carinhos,
na glorificação magnífica do Amor!

Teus olhos são dois passarinhos inquietos
voando e cantando
no horizonte largo dos meus passos curtos.

Antes teus olhos fossem aquelas duas formigas apressadas
que meus pés massacram sem sentir.

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Teu orgulho rolou no meu capricho
e foi parar no abrigo do meu silêncio.

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Quando sinto vontade de ver santo
nunca entro na igreja.
Sento-me num banco da praça
na boquinha da noite
e fico namorando os desgraçados
encolhidos na escadaria da igreja.

Cerrado

O cerrado
é um tronco no mundo
a desfocar a imagem
e encarquilhar o pensamento.
O tronco é a lenha
              a senha
é não virar brasa
        mora?

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Quase chuva

Um céu cinza
cheio de significados
recebe a força do meu olhar
de poeta extraviado.
Não fosse eu acometido
pelas lides da poesia,
no máximo diria ou pensaria:
“parece que vai chover”.

Falta de tato

O tatu sobre o armário
Cheio de pentes, lápis, caneta
De rabo caído

A moça faz a conta do dia
Faz-de-conta
Dinheiro que é bom
Nenhum

Coitado do tatu!
Poderia estar na mata
Tranquilo
Cavando sua toca

Finda o dia
A moça pega seu tatu pelo rabo
Pendura no ombro
E volta pra oca

Receita de verão

Ah! Cuiabá no verão:
mosquito, chuva e calor,
pouco ou nada acontece
e enquanto a gente padece
à espera de uma novidade
na cidade
ou, ainda melhor,
a chegada de um novo amor,
a saída
para a vida
é ter sempre ao lado,
e ligado,
um bom ventilador.

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Uso

Servir de pasto
p’ro seu corpo em cio
é ofício nobre
p’ro meu corpo em ócio.

Ameixas em compota

Existe
na vida completa
um amor que não aparece
e nem repousa tranquilo

ó eterna e doce supervisão
do muito que se tem a conservar

as formigas desfilam
num afrouxado cordão
diante dos meus olhos

(faço o que me agrada)

Meus olhos
(em lágrimas paradas)
sobrenadam
como ameixas em compota
em vidros envasadas.

Assisto aos sete anões
Ouvindo abóboras selvagens
De que abelha estou falando?
Exército de um homem só!
Branca never
Brinca Leone!

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uns fora da asa
outros da casinha!

nada de carona
em cauda de passarinho
cada qual
em seu galho
construindo o próprio ninho

A vida não seria a mesma
sem o eterno arrastar-se da lesma
agora comendo grama
pela raiz
vai
seja o que sempre quis!

Xarayés

Ardem topázios pelos céus em fora.
Sobre a pira do ocaso o Dia arqueja;
à flor do Pantanal uma asa adeja
e a voz da anhuma estridula, clangora.

A vaga azul do Xarayés absorto
pega fogo no incêndio do sol-pôr.
Xarayés verde e azul, oceano morto,
oceano triste que morreu de amor.

E a luz do ocaso acorda o impulso ardente
de heroísmo que o teu letargo encerra,
porque tu és, ó Xarayés, ao poente,
o rubro coração da minha terra.

E revivem figuras gloriosas,
crispam-te a face em fulvos arrepios
a proa das igaras numerosas
dos payaguás membrudos e bravios.

Lá desponta a monção, franjas de espuma
vêm abrindo o cortejo das canoas

e a tua vaga as beija, uma por uma,
de rudes argonautas te povoas.

Depois?... O payaguá, e a luta, e breve
a tua água se tinge num instante
de rubro sangue, a tinta em que se escreve
a Epopeia Imortal do Bandeirante.

E ouves a última queixa do precito,
vendo a torre do sonho que desaba,
que vai morrer, que é filho... E o olhar aflito
procura os lados de Araritaguaba.

Aquele outro que boia sobre as águas
era noivo. Ainda hoje se pressente
a sua alma a chorar, cheia de mágoas,
no grito ansioso da arancuã nubente.

Calmas... É noite, sonolento, absorto
tu que, há pouco, eras púrpura e esplendor,
Xarayés verde e azul, oceano morto,
oceano triste que morreu de amor.

O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

Renascer

O barulho do amanhecer
já faz alvorada
nas flautas das araras,
no badalar dos ventos,
no baile dos pássaros,
nas músicas dos galos,
do mugir das vacas.
Ao relinchar os cavalos,
brota a voz do dia.
Se desnuda a brisa cala,
o sol de luz proclama
festivo bosque de flores,
folhas e frutos,
sementes que estigam
seivando a vida,
que a gente não sabe viver.

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O índio ferve amarelo sem termômetro e mede a morte dos rios.

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Meninos, não apedrejem os pássaros!
Eles precisa cantar nas manhãs
para o Sol acordar...

Vespertina

Que segredos me contas, ventania,
quando vens, sonhadora, tatalar
as asas nobres como em litania,
dos coqueiros, ao sol que vai tombar!

Do alto da Chapada, a meus pés,
uma tênue névoa ocultava contornos
espiritualizando rochas.
Ouvi conversas inconsequentes
na inconsciente alegria de estar
uma só agitação
e na língua o gosto jovem de frutos.
Porém a alma
pastora experiente em caminhos e prazeres,
tocou-me para longos silêncios
sobrevoando mundos.

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Vida medida

vários medem espaços por metros
eu os avalio por corpos
corpos chegam se deitam
se erguem e se mandam
como estações de trem
correndo para trás

Sensualidade vegetal

Flor do cerrado
         desabrocha
escancarando sua cor
    na ramagem verde-veludo
que aguarda
     ingênua
as mãos de ferro
que lhe exterminam
        a existência.

Cor dourada
reluz como útero sagrado
          no ventre da mata
como terna canção brotada
          do fundo da terra.

O sol explode seu calor
       por sobre a tarde acesa;
abraça-lhe as pétalas macias
      com seu gesto de fogo...

A flor do cerrado
   adormece
por entre o colo da noite
   num arrepio tênue
ao sentir, sonolenta,
   a sensual carícia do luar...

Intervalo comercial

Ama depressa
que não há tempo para jogos
nem de dados nem de charme
ama com o amor que tiveres na manga
antigo ou novo em folha
rapidamente que não garantimos
sobrevida fora da bolha
ama aí mesmo debaixo da escada
e cuida que o azar no amor
não te dará algum dinheiro
não pense nos prós e contras
na teoria e nas contas
ama apesar da moda
dos obesos dos nem tanto e dos tísicos
sem levantar hipóteses
deixa aos físicos

o aviso sobre as ilusões
ama sem a nostalgia do vinil e da rádio am
ama logo sem a obsessão da alma gêmea
espécie de incesto platônico
não te dissipes com princesa ou príncipe virtual
com que copulas nas madrugadas
e no intervalo para o almoço
na ausência do chefe
na ausência especialmente
de um amor de carne e osso
ama mesmo com esse amor estropiado
por inumeráveis contingências
além do que pode este poema
ama passando da medida
de peso altura ou profundidade

com que tens aferido a existência
ama com todo desejo
não aquele de habitar a lua
mas o de ir à esquina para a cerveja ou o café
ama imediatamente
com ou sem rima refrão música tema
ceticismo desilusão ou fé
quem procura demais
nunca acha o sapato torto
ama criatura o tempo urge
se não podes cumprir as exigências da alma
ao menos não dispenses o corpo.

Cadê seus becos?
Em cada esquina, um “chinfrim”,
um bêbado alegre, trançando as pernas, “ansim, ansim”.
Beco sem cara, chamado “Chico”,
sem moagem, sem fuchico,
sem vira-lata que late,
sem biscate, sem donzela
namorando na janela.
Sem feijoada na panela,
sem carrinho do peixeiro, sem o grito do padeiro,
sem pagode, sem rasqueado, não é Beco não!
Onde andam os meus becos,
do Sovaco, Quente, Torto, Urubu,
São Gonçalo e Candeeiro?...
Cadê meus becos? Cadê meus becos!
Entre prédios e arranha-céus, abafados,
morrendo... Tudo que Deus me deu
sepultado pelo tempo!

Vapor Etrúria

Um longo apito ecoa sonoroso!
— Etrúria!... Diz o povo emocionado.
Já o porto de gente está apinhado:
— Eis, na volta do rio, o barco airoso.

Anos mais de cinquenta, no passado,
ligaste a Corumbá, vapor formoso,
a urbe de Albuquerque (nome honroso!)
– único meio de transporte usado.

Assim, tanto te uniste à nossa vida
no abraço da chegada e da partida,
que símbolo já eras da cidade.

Etrúria!... O Paraguai está vazio...
Fecharam-te o cais... Mas tu, navio,
continuas vivendo na saudade.

Imagem...

Olhos fechados, coração sonhando,
dá gosto olhá-la, assim quando adormece...
Alvos braços em cruz, o rosto brando,
numa atitude angelical de prece.

Com um sorriso em seus lábios aflorando,
o lindo busto descoberto esquece...
E o luar pelo quarto penetrando,
enamorar-se dela, então, parece.

De seus cabelos negros e sedosos,
um volátil perfume se trescala,
em suaves adejos vaporosos...

Tão mimosa se deita no seu jeito,
que extasiado fico a contemplá-la,
e, entre carícias, beijo-a satisfeito!

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Eterna

Desde essa tarde, querida,
em que, de branco vestida,
surgiste na Procissão,
vives Presente em meu sonho,
nas trovas que eu te componho,
no altar do meu Coração...

Tarde de chuva

A tarde é branca,
é branca porque chove e chove há longas horas.
Oh! O horror desta solidão polar,
desta paisagem branca de necrópole...
A chuva cai umedecendo a terra
e as minhas pálpebras.
Olho-a através do vidro fosco
de minha janela...
Olho-a com os olhos velados,
porque velados são meus sonhos, meus anseios,
minhas saudades.
Saudades dos meus sonhos e anseios
de outrora.
Saudade!
Uma bailarina lânguida,
num palco de brumas,
bailando.
Daquele tempo, o que ficou?
O vinco, em minha testa, de tristezas,
enquanto em minhas mãos vazias
erra a saudade de uns cabelos loiros.

A tarde é branca,
é branca porque chove e chove há longas horas.

Inveja

Não tenho pão nem peixe. Pouco tenho
que oferte aos meus irmãos necessitados.
Sou viajor, e de muito longe venho,
tentando combater os meus pecados.

Bem pouco vale o meu teimoso empenho
de querer amparar os desgraçados...
Um cirineu não leva mais que um lenho,
mas eu tenho milhões de irmãos cansados!...

Vi na tua alma o brilho da clemência,
vi tuas mãos vazadas pelos pregos;
deste-me o dom de crer noutra existência!

Tenho inveja demais do teu poder:
erguendo os mortos, dando vista aos cegos...
Nada disso, Jesus, posso fazer!

Alma das Ruas

Alma das ruas...
Que te quedas às esquinas,
sob o luar
e dos olhares melancólicos
das mulheres belas!...

Alma das ruas...
Que sentes no frou-frou
das vestimentas alegres
da juventude
a inspiração dos teus insatisfeitos
sonhadores!...

Alma das ruas...
No teu zing-zaguear contínuo
como mariposa,
na busca extravagante da tua
áspide, sequiosa de estraçalhar-te
a ventura, de ser
alma das ruas...

Por onde passei,
plantei a cerca farpada,
plantei a queimada.
Por onde passei,
plantei a morte matada.
Por onde passei,
matei a tribo calada,
a roça suada,
a terra esperada...
Por onde passei,
tendo tudo em lei,
eu plantei o nada.

No campo

Fulge o sol da manhã. Pela chapada
trina alegre a japuíra no arvoredo.
E de orvalho banhado, altivo e ledo,
muge um touro, escarvando na quebrada.

Dos vaqueiros a turma, sobre a estrada,
de manso vem marchando, e o passaredo,
que na alfombra brincava, vai com medo
pousar no coqueiral na fronde alçada.

Cantarolando ao eco, mais adiante
no cercado da estância, loiro infante
encaminha o rebanho até o curral.

No rio um pescador vaga indolente;
no entanto jorra o sol indiferente
catadupas de luz no Pantanal!

A lua
hóstia branca
no ninho roxo das nuvens

Meninos de rua

Um crime sob os céus se perpetua,
que à bandeira da pátria traz vergonha...
É o desfile da infância seca e nua
a transpirar miséria, fel, maconha.

Qual lixo humano, soltos pela rua,
são meninos sem pais, a voz tristonha
a pedir pão, mostrando a face crua
da dor de quem não come e quem não sonha.

A rua, amarga escola de bandidos,
é o palco dos meninos preteridos
pela nação que não é mãe – é algoz...

Ó pátria desgraçada!... Os maltrapilhos
da rua, eles também são vossos filhos
– apertai-os no peito junto a vós!

Bom Despacho

Maravilha do gótico imponente,
tão bela é a nave de ogivais arcadas!
Ao fundo, na capela, docemente,
ardem perenes lâmpadas sagradas.

Um dia os nichos, no hemiciclo albente,
de Grandes Santos hão de ser moradas,
como o gênio virá, que fez, ardente,
de Boticelli as mãos iluminadas!

Entre os despidos muros do santuário,
numa visão de célico esplendor,
vai o arcebispo orando, solitário.

E passarão os séculos vindouros
a glória perpetuando do Senhor,
na brônzea voz dos carrilhões sonoros!

Retratando...

Somos todos frustrados neste mundo;
uns são mais, outros menos, mas ninguém
pode gabar-se de não ter no fundo
recalques, pois, de sobra, todos têm!

Um poço de mistérios, bem profundo,
possui em seu recesso todo alguém...
Mas a tara só vem à luz, segundo
o interesse animal que nos convém!

Embuçado no véu da hipocrisia,
ou preso a preconceitos, já sem fé,
todo homem se empenha noite e dia,

nessa inglória tarefa de querer
insistir em mostrar o que não é,
e o que deseja, mas não pode ser!

Alavanca de ouro

Cavavam dia e noite sem cessar
e sem cessar cavavam noite e dia...
Por mais que procurassem cavoucar,
a alavanca na terra se escondia!

No alto do Rosário aparecia
a alavanca de ouro. Era começar
na Colina, o trabalho – ela fugia
cada vez mais na terra a se ocultar!...

E assim foi até que um preto escravo
salva a uma velha índia, como um bravo,
da sede que a havia de matar!...

Em paga a Currupira diz-lhe em suma:
“Quando cantar ao meio-dia a anhuma,
foge, que a mina vai se desabar!...”.

Outro

O sol se olha é no vermelho da rosa.
Ser-se água é preciso de estar lagoa.
O dentro se sabe só quem é de fora.
Escuro se esconde em muro de grota.
Dor de estar morto é vivo que chora.
Valor do verão quem diz é a garoa.
Raiz se escreve na folha que brota.
Força do dia é o contorno da sombra.
Medo é o que mede o tamanho da cobra.
Sede é chuva que chão em fogo escoa.
Pulmão de rio no incêndio se afoga.
Silêncio é excesso de verbo na boca.
Treva é prenúncio de mais uma trova.
Peixe de fundo e lua cheia se encontram.
Sina de formiga tamanduá mostra.
Galinha, de boba, adivinha a onça.
O que tracajá bota gambá é que desova.
Velhice é o atrás da ruga na moça.
Deus só se conhece pelo que obra.
Do homem, o homem é o homem que sonha.
Em ninho que é meu chupim é quem mora.
O tempo que sobra é o que o tempo rouba.
Hora de ser se deduz na demora.
O amor de uma vida se explica na outra.
De si e para si quem vive, senhora?

A cruz do poeta

O poeta carrega pesada cruz,
esse infortúnio já está comprovado,
cruel destino seus passos conduz;
é artista que vive crucificado.

A pompa do mundo não o seduz,
por bons momentos não é acompanhado,
por onde anda é sempre escassa a luz,
pelo universo é vilipendiado.

O seu talento ninguém reconhece,
por ser inspirado, sempre é mal-visto;
a paz que busca ninguém lhe oferece.

Sagrada missão ele vai cumprindo;
mesmo não sendo feliz e benquisto
acha este mundo – encantador e lindo!

Lenda do Rio Abaixo

Conta a lenda que em noite albente de luar
um rude canoeiro, a sós, pescando à vara,
de muito “peso” estava e inda nada apanhara,
apesar dos ardis que sabia empregar.

“Inda que seja o diabo agora hei de apanhar!”
disse o caboclo, iscando o anzol, e mal jogara
a linhada ao perau, esta logo esticara,
puxada por um peixe enorme e não vulgar.

A luta foi tremenda e fatigante a empresa,
até que enfim o bravo e rijo pescador
conseguiu tirar d’água a desejada presa.

Hoje vive o caboclo inteiramente gira,
pois fisgara no anzol a própria mãe, que horror!,
por um castigo atroz que o diabo lhe infligira.

ENIGMA

NÃO SOU MULHER
DE UM HOMEM SÓ
SOU MULHER SÓ
DE UM HOMEM
SOU MULHER

Brancura

A garça p’ra se esconder
– numa distância de estrela –
vem ficar na frente
da faísca mais branca de areia.

A brancura da areia
come a figura da garça
que-nem cal
numa cor-de-paz.

A areia é movediça
e a garça desaparece na brancura.

Na cor branca da nuvem errante
a garça de asas fechadas
desaparece,
imóvel.

(Poema de 1951.)

 

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